O Primeiro Êxtase! (parte 1 de 5)

O PRIMEIRO ÊXTASE

– Tudo começou com um êxtase.

É assim que respondo quando alguém me pergunta como foi que comecei a me envolver com a música. Resolvi sentar aqui, remexer nas minhas memórias e escrever sobre o que está por trás dessa frase. Te convido a me acompanhar. Vamos lá?

Tente visualizar este contexto: meu pai tocava violão desde sempre e testemunhou o nascimento da Bossa Nova; minha mãe estudava Musicoterapia e fez de mim uma verdadeira cobaia de seus estudos de musicalização infantil; meu irmão tocava bateria em blocos de rua e minhas irmãs, além de estudarem piano, viviam aventuras com sua banda de covers. Uma boa salada de estilos musicais, não?

E tinha uma cena que me atraía muito quando acontecia, quase que semanalmente. Meu pai gostava de ouvir música clássica em alto volume na sala de casa. Ele se sentava no sofá e ficava de olhos fechados, absorto, quase meditativo. Comentava, emocionado, sobre os trechos das peças que mais o impactavam. Eu adorava me sentar ao seu lado e ficar compartilhando esses momentos com ele.

Apesar de todo esse particular contexto musical, sabe qual era meu sonho mesmo? Ser jogador de futebol! Até meus 11 anos só pensava nisso. Jogava todos os dias com meus amigos e um dia sequer sem bola me deixava até triste. Pois foi após uma intensa tarde futebolística que se deu o acontecimento que mudou minha vida para sempre.

A CULPA É DO SCHUMANN!

Nas minhas memórias foi assim: cheguei da rua imundo, exausto e fui tomar banho. Era finalzinho de tarde. Minha mãe preparava o jantar e a qualquer momento me convocaria para sentar à mesa. Enquanto isso não acontecia resolvi estrear os sofás novos que tinham chegado naquela tarde dando um salto e caindo pesadamente sobre as almofadas ainda plastificadas.

À procura de algo para fazer, remexi a gaveta onde meu pai guardava suas fitas cassete (ah, anos 80…) e procurei aleatoriamente por alguma música clássica para ouvir. Por que clássica? Não sei. Acho que queria editar da maneira mais fiel possível um daqueles momentos musicais com meu pai, ainda que sem a presença dele, numa clara demonstração de independência e auto-suficiência.

A fita escolhida, da tradicional gravadora DECCA, tinha dois concertos para piano e orquestra. No lado A era o concerto de Grieg e no lado B o concerto de Schumann. Como a fita estava já no lado B, naturalmente foi o concerto de Schumann que ecoou pela casa enquanto o empadão de frango estava no forno.

Fitas clássicas da gravadora DECCA.As clássicas fitas da DECCA.

Ouvi atentamente os quase trinta minutos de música. Minha impressão depois de ouvir? Legal. Música bonita. Mas música clássica é assim: de primeira não dá pra falar muito a respeito. Achei bacana e pronto.

No entanto, não sei bem explicar o porquê, nos dias a seguir continuei ouvindo o mesmo lado B. Curioso que não virava a fita e ouvia o lado A com o concerto de Grieg. Eu sempre voltava o lado B todo (quem conviveu com toca-fitas sabe que levava um bom tempo até que a o aparelho rebobinasse tudo até o início). E eu tinha um walkman, que era um toca-fitas portátil que funcionava à pilhas. Hoje em dia deve parecer um trambolhão, mas naquele tempo era algo altamente descolado e moderninho. Ouvir música enquanto andava na rua? Nossa, que coisa do futuro! Ouvia o concerto de Schumann em todo lugar, do início ao fim, todos os quase trinta minutos, na íntegra.

Walkman. Puro anos 80!Um legítimo Walkman. Tão anos 80…

E foi então que aconteceu. Estava deitado em minha cama com o walkman ao meu lado ouvindo o concerto em alto volume nos fones de ouvido. Naquele dia, depois de tantas ouvidas atentas, eu já sabia tudo o que ia acontecer. Sabia que depois de um trecho em que as cordas entoavam o tema do primeiro movimento, em seguida o piano entraria e faria uma versão amplificada do tema, com a mão esquerda indo e vindo enquanto a mão direita fazia acordes com cada vez mais notas, a textura se encorpando, crescendo, fazendo o piano ocupar todo o espectro sonoro com seu poderoso som. Já esperava, logo adiante, a entrada da clarineta pra fazer um belo e nostálgico tema acompanhado pelo piano em suaves arpejos…

Ouvir aquele concerto conhecendo cada segundo do que estava por vir me impactou profundamente. De repente fui tomado por uma sensação arrebatadora, algo que sequer suspeitava que poderia existir. Eu estava sem ar e lágrimas escorriam pelo meu rosto. Era um choro diferente, não era dor. Era uma criança de 11 anos descobrindo o êxtase da Arte.

Eu não entendi porque estava chorando. Fui conversar com minha mãe, meio assustado, até. Ela me explicou que não tinha nada de errado, que eram apenas “lágrimas de beleza” por ter gostado muito da música. E pronto, a partir daí tudo mudou. Agora eu precisava estudar piano, precisava tocar Schumann!

O futebol? Bom, eu não sabia, mas trocaria a bola pelo piano pelo resto da minha vida.

Robert Schumann (1810/1856)A culpa é dele!

A PRIMEIRA AULA DE PIANO

Minha mãe sem querer fez tudo ao contrário. A princípio colocou minhas irmãs para aprender piano. Era uma decisão tradicional, fazia parte da educação e coisa e tal. Depois, já estudante de Musicoterapia e conhecedora de novas técnicas, métodos e filosofias de ensino, resolveu que não deveria forçar as filhas a estudar contra a vontade. Numa tarde dessas da vida, reuniu as duas e disse: “quem não quiser mais estudar piano pode sair da aula”. Bastou isso e as duas decidiram na mesma hora encerrar com as semanais visitas ao Conservatório Brasileiro de Música. Isso marcou minha mãe e ao longo da minha infância ela estava decidida a só me colocar em aulas de qualquer instrumento somente se eu quisesse muito!

Pois bem, depois de ter descoberto o êxtase da Arte comecei a querer aprender piano. Observava minha mãe tocar e ela me ensinou, assim só no olho, sem partituras, a primeira parte de Pour Elise, de Beethoven (aquela música massacrada de tanto que foi usada em esperas telefônicas, em caminhões entregadores de gás e afins). Depois encontrei a partitura da peça e, por já saber tocar uma parte, por associação acabei aprendendo os fundamentos da leitura. Meu interesse só aumentava e minha mãe nada de me colocar pra fazer aula.

Minha primeira partitura escrita (1987).Partitura mais antiga, de 1987.
Aos entendidos, por favor perdoem
os equívocos de um jovem aspirante
a músico que ainda não tinha tido
sequer sua primeira aula!

Comecei a criar música, inclusive escrevendo minhas próprias partituras (foto acima). Estava super envolvido e passava boa parte do meu dia estudando, lendo livros sobre música e ouvindo os grandes compositores. A esta altura, já com 12 anos – aproximadamente um ano depois do evento Schumann, era um ávido pesquisador de gravações e montava meu acervo que eu próprio gravava da rádio (Clássicos JB, todos os dias às 20h). E nada de aula de piano… Um dia tive que fazer um comício em casa, defendendo meu direito de poder estudar apropriadamente, com um profissional, afinal já tinha aprendido a ler partituras, já tocava, compunha e escrevia minhas músicas! O que mais seria necessário fazer para demonstrar meu interesse?

Classicos JB FM de Março de 1990. Um achado!

Finalmente consegui. Minha mãe afrouxou suas Novas Regras Para Lidar com a Educação Musical dos Filhos e recebemos a visita da prestigiada professora Angela Schettino em nosso apartamento para uma entrevista. Tudo certo: marcamos a primeira aula e eu mal aguentava esperar. Foi um dia tão importante para mim que nunca mais esqueci: era dia 5 de agosto de 1988, uma sexta-feira, às 16h30, num antigo prédio da rua Barata Ribeiro número 678, em Copacabana. Memória indelével.

A INEVITÁVEL OBSESSÃO

Foram anos de muito, muito estudo. Para alguns pode parecer algo até meio obsessivo e exagerado. Mas, francamente, qual artista não é obsessivo? Aliás, seria possível ser artista ou se dedicar febrilmente a qualquer atividade da vida sem um toquezinho de obsessão? O que seriam dos grandes atletas, dos grandes dançarinos ou dos artistas do Cirque de Soleil, por exemplo, sem essa motivação visceral de se aperfeiçoar e superar seus limites? Só mesmo movido por esse desejo extraordinário para conseguir aguentar tantas horas seguidas de trabalho, dizendo não para tantas coisas bacanas que surgem e tentam captar nossa atenção, tirando nossa concentração e foco de determinada atividade. Já toquei até sangrar muitas vezes ao longo da minha vida de estudante. Como parar? Não dá, é incontrolável!

Por conta dessa entrega tão absoluta evoluí bastante nos dois primeiros anos de estudo. Em 1990 acabei mudando de professora, procurando orientação mais profissional (ou melhor dizendo, para os que pretendem se tornar profissionais) e uma nova fase se iniciou. Foi uma separação difícil da querida Angela, que foi super importante na minha formação, mas foi um passo necessário em busca de horizontes mais desafiadores. Eu queria mais. E MAIS!

(Pequena Autobiografia, parte 1 de 5)

* * *
Bom, é isso. Essa foi a primeira de cinco partes dessa pequena autobiografia. Espero que tenha gostado da leitura!

A próxima parte fala da minha mudança para o Conservatório Brasileiro de Música e como se deu minha formação e meu amadurecimento como pianista.

Ela já foi publicada, aliás. Adoraria compartilhá-la com você. Dá um pulo lá pra ler o artigo Do Êxtase ao Desencanto.

Enquanto isso, seria muito bacana saber de você se também tem lembranças de alguma experiência da infância/adolescência que de alguma forma tenha influenciado na sua decisão de que caminho seguir na vida. Não deixe de escrever aqui nos comentários, tá bom? Respondo todos! 

Até breve!

Luiz