ANTES DE MAIS NADA
Prezado leitor, prezada leitora, preciso te dizer que escrevo essas linhas em pleno mês de novembro de 2018.
Tomo este cuidado porque não é difícil imaginar que você possa estar me lendo no futuro, distante do meu presente. Por isso, para entender a motivação deste texto, é importante que eu ilustre rapidamente o contexto ao me redor.
EXTREMOS QUE NÃO SE TOCAM
Acabaram de acontecer as eleições presidenciais no Brasil e por conta disso uma intensa polarização política que vem se acumulando e se agravando nos últimos tempos atingiu seu ápice. Chegou-se num ponto onde o país ficou totalmente dividido. Famílias rachadas ao meio, amizades de longa data se desintegrando, discursos de ódio se inflamando nas ruas e nas redes sociais.
Nas últimas semanas fui sugado por esse debate e me vi tomado por essa febre de discordância e perplexidade. Afastei-me do piano, me engajei em discussões políticas… Só se falou nisso! Não havia espaço para mais nada!
Me vi sem energia, sem esperança, questionando as boas intenções das pessoas mais queridas. E vice-versa, o que é pior. Uma coisa horrorosa de se sentir.
Depressão.
Fiquei quase um mês sem encostar no piano, sem parar pra ouvir música ou nada que me puxasse para fora desse estado. Quem não viveu na pele este momento terá dificuldade em imaginar o quão agoniante foi presenciar isso tudo e ao mesmo tempo não conseguir fazer outra coisa que não vivenciá-lo.
VOLTAR À TONA
E foi então que aconteceu: sentei-me ao piano e quase pude ouvi-lo me indagar “e aí, rapaz, por onde tem andado?”. Meio erraticamente fui dedilhando algumas notas, procurando acordes, tentando reencontrar os caminhos que conheço tão bem. Quando dei por mim estava tocando, absorto, e um grupo de pessoas me assistia.
Em poucos instantes ficou cristalino aos meus olhos como toda essa balbúrdia emocional a que estamos sujeitos na verdade é algo pequeno diante do que realmente importa.
Uma humildade profunda tomou conta de mim. “Sou mera poeira cósmica”, percebi enquanto tocava um noturno de Chopin. Esses conflitos todos, esses elaborados argumentos que parecem tão importantes e que nos levam a querer esfregar supostas verdades na cara dos outros como se fôssemos as pessoas mais esclarecidas do mundo (ah, como adoramos estar com a razão). Isso não é nada.
Isso não nos define. Isso não nos enleva. Não revela de fato quem somos, o nosso valor diante do mundo, das coisas e das pessoas. Há algo que paira acima disso tudo, algo que atravessou os tempos desde nosso primeiro suspiro como espécie, para além dos fins e dos começos, cravando nas paredes das cavernas, nas telas, nos afrescos de igrejas, nos livros e partituras o registro realmente verdadeiro do que somos como civilização e que nos diferencia de todos os outros seres vivos: a Arte.
UMA OBRA DE 64.000 ANOS
Não importa que parte do espectro político nos parece a mais certa ou que discurso ideológico está por trás de nossas palavras. Não importa em que tempo e em que ponto do planeta nascemos, qual nossa religião, nossa língua materna… Nada fará diferença. A Arte nos arrebatará a todos, inexoravelmente.
E nos ultrapassará no tempo, sempre, como tem feito ao longo de milênios. Só ela consegue criar um elo entre o que somos hoje, em 2018, e nossos semelhantes pré-históricos de mais de 60.000 anos atrás. isso não é absolutamente incrível?
E justamente esse poder de criar conexão é que mais me chamou atenção ali naquele momento. Arte é uma das formas mais primordiais de comunicação do ser humano. Ela nos aproxima e nos permite compreendermos uns aos outros, sejam amigos próximos ou completos estranhos.
CONEXÃO
Sentado naquele piano eu podia sentir a presença e uma reconfortante troca de energias com as pessoas ali presentes. Pouco antes de começar estávamos tendo uma franca discussão, uma parte do grupo inclusive estava bem acalorada, e momentos depois estávamos todos placidamente ouvindo Chopin.
Eu mesmo, que há semanas me sentia ensimesmado e desesperançoso, redescobria um motivo para acreditar em algo, acreditar nas pessoas independentemente de qualquer coisa. Estávamos todos sorrindo, unidos através da música de uma maneira muito única e inexplicável.
A ETERNA LUZ NO FIM DO TÚNEL
Nunca a célebre frase do pintor Gerhard Richter – “Arte é a mais elevada forma de esperança” – fez tanto sentido pra mim. Estava tão vividamente confirmada e validada que seria capaz de tatuar em minha pele. Tornou-se uma de minhas verdades.
Para além de suas propriedades terapêuticas, a Arte pode trazer significado e propósito para nossas vidas. Não precisa ser um artista para se valer dessa força. Independente do que se faça da vida, estar em contato com essa face sublime da nossa humanidade – a criatividade – pode nos fazer olhar para nós mesmos de maneira mais elevada, colocando em perspectiva nossos desafios e dificuldades e acreditando que podemos ir mais longe e mais alto.
É preciso valorizar aquilo que nos faz humanos, não perdermos de vista nossa essência e o que somos capazes de realizar. Viver sem Arte não é uma opção. É o verdadeiro legado de uma civilização, capaz de tornar qualquer cultura verdadeiramente imortal.
SOMOS TODOS TERRÁQUEOS
Sabe em que todo governo deveria investir largamente? Enviar seus artistas nacionais para fora e trazer os artistas estrangeiros para dentro, num contínuo ir e vir cultural e artístico. Quanto mais se promovesse este movimento mais estaríamos conectados uns aos outros em nível global, mais nos veríamos como habitantes do planeta Terra e não “brasileiros”, “franceses”, “chineses” ou “egípcios”.
Ao celebrar nossa humanidade mais fundamental, estaríamos automaticamente promovendo o entendimento maior entre todos os povos, uma compreensão vasta e abrangente de si mesmo e do outro. O mundo está precisando disso: se conhecer, se aceitar, se admirar, se conectar.
Se podemos sentir uma ligação com um neandertal de 60.000 anos atrás, por que tem sido tão difícil fazê-lo com uma pessoa logo ao lado e até mesmo com um familiar ou um amigo de infância?
MISSÃO
Só sei que me levantei do piano naquela tarde me sentindo aliviado e com meu propósito de vida renovado: fazer da minha Arte algo bom, verdadeiro, e humildemente compartilhá-la com o mundo que me cerca para servir às pessoas da forma mais luminosa. Essa ideia de “estar a serviço dos outros” enobrece muito a tarefa do artista (aliás, de qualquer pessoa). É uma noção que ganhou uma nuance totalmente nova para mim.
Olhemos para cima e tenhamos a percepção de que somos feitos de algo muito maior, uma noção capaz de nos fazer – não só eu e aquele pequeno grupo em torno do piano, mas também as outras quase oito bilhões de almas vivas – cantar numa só voz a maravilha de sermos humanos.
Só a Arte pode nos salvar!
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Olá! Que bacana que você chegou até aqui. Espero que tenha curtido a leitura!
O resultado fulminante da publicação deste artigo e todo o feedback em comentários e emails que recebi é que foi absolutamente inevitável que eu arregaçasse minhas mangas e fizesse minha parte, exercendo minha função primordial como artista. Fazer Arte! Literalmente, com todas as minhas forças, passando por cima de qualquer resistência ou obstáculo.
No finalzinho de 2018 fiz uma campanha de financiamento coletivo que me permitiu gravar um novo disco com minhas composições para piano solo. A campanha foi um sucesso e ainda no primeiro semestre de 2019 já estava com meu álbum La Liberté gravado. ♫
Em seguida, mais uma campanha de financiamento coletivo para viabilizar uma turnê na Europa, que também deu super certo. A viagem aconteceu logo depois do lançamento do disco numa noite memorável, na Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro. Era final de outubro de 2019 e a sala estava cheia, tendo a récita sido transmitida ao vivo pela Radio MEC-FM. Poucos dias depois embarquei para recitais no Porto, em Paris, em Londres e em Edimburgo.
Plenitude absoluta. Isso sim é fazer minha arte com toda a força. Que a vida me permita continuar humildemente fazendo isso e levando essa missão pessoal cada vez mais longe.
Se você tiver curiosidade para conhecer La Liberté, está disponível nas melhores plataformas de streaming. Para abrir no Spotify, basta clicar aqui.
Obrigado mais uma vez. Até a próxima postagem!
Luiz